segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Kombi

A vida parecia mansa nos anos 60. Pelo menos até 64, antes do golpe. Aliás, o golpe, que inventaram de dizer que era revolução e que o Brasil iria pra frente, provocou uma anestesia profunda em grande parte da sociedade. A outra parte, consciente das perdas e do tiro na alma, partiu para a luta em busca de direitos, de oxigênio, de dignidade, enfim.
Mas quando se é criança e não se conhece a tragicidade que a ditadura provoca, a gente contempla e vive.
E então, em dias comuns, sem nada de especial, sem data marcada, passava pela nossa rua, a Albuquerque Maranhão, uma Kombi branca, muito limpa, e do alto-falante vinha a grande notícia: “chegou o bolacheiro, chegou. É bolacha, biscoitos e macarrão direto da fábrica...”.
O motorista, então, parava o carro e lá chegava a dona de casa para a compra do macarrão, a bolachinha para o café da tarde, as balas para os netos. Mas o pacote de macarrão talharim a gente via de longe, até porque paulistano adora comer macarrão e as quintas e domingos é sempre com frango, que pode ser assado, ensopado, não importa, mas é frango.
Após o simpático anúncio íamos correndo e o bolacheiro – que nunca soubemos o nome do protagonista – abria também um gavetão da Kombi e lá tinha de tudo: chocolates, balas, drops, chicletes. Era um delírio comprarmos um drops com balas mastigáveis chamado Banda e eram várias as opções de sabores. O mais gostoso era Banda laranja, mas tinha também de abacaxi e morango. Às vezes levávamos a Banda para o colégio, para a hora do recreio. Continuávamos a vida depois da saborosa aquisição e o bolacheiro ia embora, voltando somente no meio da semana seguinte.
Num desses dias, o meu pai chegou em casa exibindo, orgulhoso, um carro novo, zero. Era um fusca 67 vermelho. Era no 11 de setembro, quinta-feira e o almoço foi muito alegre. O macarrão com frango, naquele dia, desceu que foi uma maravilha. Afinal, um carro zero quilômetro naquele tempo era sinal de vitória, o resultado de uma longa luta. E com freqüência vinha a minha mãe falar do Juscelino, “que implantou a indústria automobilística no Brasil”. A dona Célia sempre falou muitíssimo bem do conterrâneo e ai de quem fizesse alguma crítica ao homem que gostava da música “como pode um peixe vivo viver fora da água fria. Como poderei viver?”... Mas a chegada do carro foi um deslumbramento só. Até hoje tenho esse carro, guardado na minha casa de São Paulo, na vila Sônia, que guarda memória, várias viagens a Minas, quando voltava abarrotado de coisas gostosas, até penca de banana verde, que amadurecia no caminho...
Rimar a voz do bolacheiro com o fusca vermelho me provoca a lembrança de uma infância simples e humana, com a certeza de que viver era bom e necessário para se construir felicidade. Aquelas gerações tinham uma visão de mundo encantadora: o esforço para que a vida fosse plena deveria estar ao lado da beleza, da contemplação, do olhar as luzes da cidade... E planejar... E sonhar.
Eu vivia intensamente e feliz ao olhar, da janela do meu quarto do sobrado da Rua Albuquerque Maranhão, as luzes da cidade. São Paulo à noite vista de uma janela não oferece riscos, medo ou apreensão. Oferece a imensa oportunidade de criar, imaginar e se deslumbrar.

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